A internet social e os seus perigos

Actualizado: 15/06/2025

Publicado: 09/06/2025

As redes sociais, quando bem concebidas, poderão ter enorme utilidade, permitindo comunicação online pública ou privada num ambiente onde o respeito, segurança e privacidade de todos seja uma prioridade. A única forma de saber se essas plataformas foram bem concebidas é através da transparência, ou seja, tornando público o software (ou código de programação) utilizado. Dessa forma, qualquer especialista em programação web poderá analisar o código e reportar/denunciar eventuais problemas relacionados quer com bugs, quer com alegadas funcionalidades que na realidade não passam de uma (desonesta) estratégia de marketing. Naturalmente que, com o aumento da popularidade de um produto, qualquer discrepância grave entre o produto real e o que de bom sobre ele é alegado nos media, seria prontamente noticiada. Um software cujo código seja de livre acesso ao público diz-se de código-aberto, ou em Inglês open-source (1), sendo que alguns projectos permitem até que terceiros façam propostas técnicas para corrigir bugs ou introduzir novas funcionalidades. As plataformas mais populares para alojar e gerir projectos de software são o GitHub e o GitLab.

Claro que nem todos os softwares requerem ser open-source para ser altamente credíveis. A transparência de um produto tecnológico é tanto mais relevante quanto maior o risco de actos ilícitos ou anti-éticos por parte ou contra os utilizadores. Por exemplo, tipicamente não se exige que um website que sirva apenas para os utilizadores consumirem os conteúdos aí publicados pelo dono do website, seja tão transparente como uma aplicação onde cada utilizador crie uma conta e/ou interaja com outros e/ou publique ou armazene conteúdo próprio. O que sim se recomenda, é que o navegador web (ou browser) utilizado para aceder a qualquer website ou aplicação seja transparente e focado em segurança e privacidade.

Desde o advento da internet no final do séc. XX, que esta tem sido controlada por gigantes empresas tecnológicas, as chamadas Big Tech (e.g, Google, Apple, Meta (ex-Facebook), Amazon, Microsoft). Inicialmente, antes do boom dos smartphones e da internet social, a controvérsia era pouca. Mas o sucesso comercial desses impérios foi transformando a ideia original de uma internet aberta, descentralizada e salubre em algo verdadeiramente insustentável.

O domínio das Big Tech já transcende o software. Estimava-se que em 2020 o Facebook e a Google juntas seriam donas de cerca de 29% dos cabos submarinos de internet que percorrem o mundo (2). Já no software, a disparidade das quotas de mercado entre as gigantes e as suas alternativas é de tal forma abismal que é razoável apelidar o domínio das Big Tech de monopólio. Por exemplo, (i) a Meta domina largamente as tradicionais redes sociais e messengers através do Facebook, Instagram e WhatsApp, (ii) a Google domina os browsers, motores de pesquisa e alojamento/streaming de vídeo através do Chrome, google.com e YouTube, respectivamente, e (iii) a Microsoft e a Apple dominam os sistemas operativos para computadores pessoais através do Windows e macOS, respectivamente. Esta insustentável concentração de poder foi-se agravando com o tempo através da aquisição de produtos tecnológicos alternativos que, segundo essas grandes corporações, poderiam colocar em risco o seu domínio comercial. Por exemplo, a Google comprou o YouTube e o Waze, o Facebook comprou o WhatsApp e o Instagram, e a Microsoft comprou o LinkedIn e o GitHub.

Regulamentação em defesa da concorrência (antitrust regulation, em Inglês) existe para prevenir negócios de centralizar em si demasiado poder sobre uma indústria. Legisladores ao nível estatal e federal podem agir nesse sentido e penalizar as empresas com multas ou exigir a sua divisão. Muitas acusações e condenações têm tido lugar, mas ao que parece não compensam a velocidade de crescimento das Big Tech, pois o problema está muito longe de ser solucionado.

Os perigos de qualquer monopólio assemelham-se aos dos regimes autoritários (e.g, censura, vigilância, desinformação, manipulação comportamental), mas se pesquisar na web irá encontrar inúmeras referências a este tema (3, 4, 5, 6).

Edward Snowden é um ex-funcionário da CIA e ex-subcontratado da NSA (National Security Agency). Em 2013 vazou documentos classificados que revelaram a existência de programas de vigilância massiva globais do governo Americano, os quais envolviam empresas de telecomunicações e gigantes tenológicas (7, 8).

Frances Haugen é uma denunciante e ex-empregada do então Facebook, tendo testemunhado em Outubro de 2021 perante o congresso Americano para alegar que a empresa (i) priorizava lucros astronómicos em detrimento das pessoas, (ii) prejudicava as crianças e (iii) estava a desestabilizar as democracias (9). Haugen vazou dezenas de milhares de páginas de documentos internos da empresa, as quais ficaram conhecidas como Facebook papers e serviram de base a diversas investigações. Mostrou-se particularmente que empregados da empresa estavam cientes dos impactos nefastos dos seus algoritmos no bem estar dos utilizadores.

Milhares de pais recorrem globalmente aos tribunais para responsabilizar as empresas tecnológicas pelo que alegam ter sido causado pelos seus algoritmos ou negligência. O vídeo seguinte apresenta algumas consequências trágicas alegadamente associadas ao uso de apps sociais das Big Tech, bem como relevantes testemunhos de alguns dos seus ex-empregados.

As consequências mortíferas das redes sociais (2024).

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o uso abusivo da internet aumentou drasticamente nas últimas décadas, arrastando consigo consequências nefastas para a saúde. No vídeo seguinte é entrevistado o Dr. Cristiano Nabuco, psicólogo (PhD) e coordenador do Núcleo de Dependências Tecnológicas da Universidade de São Paulo (Brasil). Para ele, as redes sociais podem, pela 1º vez na história da humanidade, conduzir à interrupção da consolidação do conhecimento.

Redes sociais, uma doença global? (2022)

Uma investigação da Amnistia Internacional mostrou que a página “Para ti” do TikTok pode facilmente arrastar crianças e jovens interessados em saúde mental rumo a espirais de conteúdos potencialmente nocivos, incluindo vídeos que idealizam e fomentam o pensamento depressivo, as autolesões e o suicídio (10). Outra investigação (11) revelou que vídeos curtos (e.g, 60 s ou menos) degradam a nossa capacidade para reter intenções.

TikTok pode levar-te a lugares muito obscuros (2023).

O dilema das redes sociais é um híbrido documentário-drama da Netflix de 2020 que revela como as redes sociais estão a reprogramar a civilização, com tecnólogos a soarem o alarme sobre as suas próprias criações.

O dilema das redes sociais (2020).

Em A fábrica de cretinos digitais, o neurocientista Michel Desmurget (PhD) alerta que o corpus de investigação que liga o consumo digital recreativo e os riscos para a saúde é impressionante, afectando campos como a obesidade, anorexia/bulimia, tabagismo, alcoolismo, toxicodependência, violência, depressão, ou sedentarismo. Para Desmurget há um abismo entre a perturbadora realidade científica e o regularmente tranquilizador (e até entusiasta) discurso jornalístico sobre o impacto da revolução digital nas novas gerações.

Será que o excesso de consumo de conteúdo digital pobre prejudica o cérebro? Segundo Desmurget, há evidência científica que mostra que a geração Z (também conhecida como “nativos digitais”) é a primeira a ter um Quociente de Inteligência (QI) inferior ao dos pais, contrariando o efeito Flynn. Essa tendência foi documentada em países onde os fatores socioeconómicos têm variado pouco, como a Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda ou França (12). Por outro lado, a “palavra” do ano de 2024 para a Universidade de Oxford foi brain rot (13) (podridão cerebral, em Português), a qual se refere à suposta deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa como resultado do consumo excessivo de conteúdo trivial ou de baixa qualidade, em particular na internet.

Os testes PISA são feitos por alunos de 15 anos, e a geração Z alcançará(ou) essa idade em 2012-2027 (14, 15). Note-se na Figura 1 que é precisamente desde 2012 que se dão as descidas mais abruptas no desempenho médio da OCDE em matemática, leitura e ciência.

Figura 1. Evolução do desempenho médio da OCDE no PISA, entre 2003 e 2022.

O Transtorno de Défice de Atenção e Hiperactividade (TDAH) é uma condição psiquiátrica cuja prevalência tem vindo a aumentar consideravelmente nas últimas duas décadas. Evidência científica (16) mostrou que adolescentes com sintomas de TDAH provavelmente exibirão um uso problemático e de elevada intensidade das redes sociais, e que o uso problemático das redes sociais permitia prever sintomas de TDAH ao longo do tempo (no caso de ambos serem auto-declarados).

1. Contribuidores da Wikipédia (2023). Software de código aberto, Wikipédia – a enciclopédia livre. 📦

2. Martin H (2019). Undersea Espionage: Who Owns Underwater Internet Cables?, The McGill International Review. 📦

3. Ghaffary S, Morrison S (2021). The case against Big Tech, Vox. 📦

4. Simões P (2024). Afinal era verdade: Facebook e Google ouviam tudo o que dizia perto do seu smartphone, pplware. 📦

5. Harada J (2021). The Instagram ads Facebook won’t show you, Signal blog. 📦

6. Hern A (2019). Apple contractors ‘regularly hear confidential details’ on Siri recordings, The Guardian. 📦

7. Greenwald G,  MacAskill E, Poitras L (2013). Edward Snowden: the whistleblower behind the NSA surveillance revelations, The Guardian. 📦

8. Wikipedia contributors (2025). Edward Snowden, Wikipedia – the free encyclopedia. 📦

9. Milmo D, Paul K (2021). Facebook harms children and is damaging democracy, claims whistleblower, The Guardian. 📦

10. Amnistía Internacional (2023). Empujados a la oscuridad, Amnistía Internacional. 📦

11. Chiossi F, Haliburton L, Ou C, Butz AM, Schmidt A (2023). Short-Form Videos Degrade Our Capacity to Retain Intentions: Effect of Context Switching On Prospective Memory, DOI📦

12. Velasco IH (2020). “Geração digital”: por que, pela 1a vez, filhos têm QI inferior ao dos pais, BBC. 📦

13. Oxford University Press (2024). ‘Brain rot’ named Oxford Word of the Year 2024, Oxford University Press. 📦

14. OECD (2023). PISA 2022 results (volume I): The state of learning and equity in education, OECD. 📦

15. Wikipedia contributors (2025). Generation Z, Wikipedia – the free encyclopedia. 📦

16. Dekkers TJ, van Hoorn J (2022). Understanding problematic social media use in adolescents with attention-Deficit/Hyperactivity Disorder (ADHD): A narrative review and clinical recommendations, DOI📦

Temos na educação as soluções para a maioria dos nossos problemas. Seguem-se algumas recomendações.

Aplicações sociais só poderão ser sustentáveis se forem gratuitas, respeitadoras da privacidade do utilizador, transparentes (open-source), e (i) descentralizadas ou (ii) sem fins de lucro. Como alternativas às aplicações sociais das Big Tech, recomendo o Bluesky (apresentado mais abaixo) para comunicação pública e o Signal para privada. Mas claro está, nem a plataforma tecnologicamente mais avançada para discurso público sobreviverá ao facto de não conseguir atrair as massas ou desse discurso estar cada vez mais pobre, consequência natural da supracitada “descerebração”.

Em prol da saúde, física e mental, recomendo os 16 anos como idade mínima para utilização de smartphones, e uma redução significativa do uso do telemóvel e do número de aplicações (sociais ou não). Passar muito tempo a olhar para o telemóvel não é bom, devido à sobrecarga sobre a coluna cervical e à luz azul emitida pelo ecrã, as quais podem conduzir ao “síndrome do pescoço de texto” (1) e a perturbações do sono, respectivamente.

Investigação científica considerável tem sugerido que o uso do telemóvel constitui, a longo prazo e devido à radiação emitida, um risco para a saúde (incluindo cancro cerebral) (2). Como forma de minimizar esse risco, o investigador da UC Berkeley Joel Moskowitz (PhD) recomenda:

  • Menos telefones sem fios
  • Manter o telemóvel longe do corpo
  • Priorizar redes Wi-Fi em detrimento de redes celulares (e.g, 5G)
  • Não usar o telemóvel quando o sinal estiver fraco (estão concebidos para emitir mais radiação nesse cenário)

Estou tão cansado de smartphones que em breve venderei o meu e comprarei um como o apresentado no próximo vídeo, desenvolvido pela empresa Suiça Punkt. Além de minimalista e focado em segurança, vem com o serviço Signal instalado (e o respectivo código é open-source). 

Punkt’s MP02 4G minimalist phone.

É uma nova rede social, do tipo microblogging e de natureza descentralizada, e para mim a primeira com potencial para corrigir a internet social actualmente usada pelas massas – uma internet centralizada e com fins de lucro, onde os donos das aplicações têm único e total controlo sobre a experiência dos utilizadores e seus dados.

O site do projecto é bsky.social, e a aplicação web está localizada em bsky.app. Todo o projecto tem transparência máxima, estando o código da app e da inovadora tecnologia subjacente (AT protocol) disponíveis no GitHub. A empresa Americana que desenvolveu o protocolo AT e a aplicação Bluesky é a mesma (Bluesky, PBC), uma corporação de benefício público. A aplicação foi aberta ao público em Fevereiro de 2024, e já conta com mais de 36 milhões de contas. No exterior, e à primeira vista, assemelha-se ao Twitter (agora X), mas na essência não há qualquer semelhança. O que mais diferencia o Bluesky das redes sociais das Big Tech é (3):

  • transparência – o código de programação do software é público, permitindo, além do escrutínio, que qualquer um crie um serviço/app concorrente do Bluesky.
  • descentralização e portabilidade – se deixar de gostar do serviço prestado pela app Bluesky (e.g, funcionalidades, interface gráfica, regras de moderação), pode em poucos clicks transferir todos os seus dados (e.g, posts, quem segue e quem o(a) segue) para outro serviço/app que utilize o protocolo AT; os dados dos utilizadores pertencem ao protocolo, e não às aplicações que o utilizam.
  • controlo sobre os algoritmos – qualquer pessoa pode criar o seu feed personalizado, definindo o seu algoritmo, ou subscrever feeds criados por outros utilizadores; por conseguinte, nunca existirá uma timeline onde a empresa detentora da app decida os conteúdos a promover em função do comportamento específico do utilizador.
  • moderação – além das funcionalidades integradas na app e serviço de moderação oficial do Bluesky, que permitem filtrar conteúdos com base em bloqueio/silenciamento de contas ou alertas/ocultação de posts, o utilizador poderá também subscrever serviços de moderação de terceiros (conhecidos como labelers – p.e, AI Imagery Labeler, caso queira evitar conteúdo produzido por inteligência artificial); a descentralização também é isto, permitir que qualquer um possa desenvolver serviços integráveis em apps do protocolo AT (eis um directório).
O crescimento da rede social Bluesky (2025).

O Bluesky tem várias formas de verificação de contas, sendo a original verdadeiramente inovadora. Ela permite que qualquer utilizador na posse de um domínio/website estabeleça como seu username esse mesmo domínio web. Naturalmente que tal opção requer um procedimento técnico simples a ser realizado pelo administrador do website, tal como é explicado neste artigo. Por exemplo, uma conta com username @razao.xyz só poderá pertencer ao detentor do domínio razao.xyz (eis um directório de todos os usernames no Bluesky correspondentes a domínios). A outra forma de verificação de contas no Bluesky está descrita neste artigo. Já são muitas as entidades mediáticas verificadas no Bluesky, das mais variadas esferas da sociedade (e.g, Agência LusaBanco de PortugalSignalThe New York TimesThe Guardian,‬ Financial Times‬, ‪UNESCO‬, Harvard University‬, ‪University of OxfordGoverno do Brasil‬, ‪World Health Organization).‬

1. Root T (2024). Do you have text neck? How phones are affecting us physically, The Guardian. 📦

2. Brice A (2021). Moskowitz: Cellphone radiation is harmful, but few want to believe it, UC Berkeley News. 📦

3. Kleppmann M, Frazee P, Gold J, Graber J, Holmgren D, Ivy D, Johnson J, Newbold B, Volpert J (2024). Bluesky and the AT Protocol: Usable decentralized social media, arXiv [Cs.DC], DOI📦


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